Ver um filme de Mazzaropi no momento em que era lançado era um espetáculo às vezes mais apaixonante do que o próprio filme. Era um mundo diferente do de agora, quando a Cinamateca Brasileira abre uma vasta retrospectiva do seu cinema, com 18 filmes, entre eles a estreia de seis novas cópias digitalizadas, entre esta quarta-feira (29) e 9 de fevereiro.
Para começar, a fila dobrava esquina e mais esquina no dia 25 de janeiro, data da fundação de São Paulo e data religiosa de estreia do filme anual de Mazzaropi. Depois, na plateia, a plateia era um show à parte.
Enquanto mocinhos e bandidos, mocinhas e sogras se ocupavam de levar a intriga adiante, boa parte do pessoal se entretinha com os doces e pipocas ou conversando com o vizinho. No momento em que Mazzaropi, o caipira, entrava em cena, de um instante para outro o silêncio era total. Todos os olhos voltavam-se para a tela. Em seguida, todos riam. Mas riam do quê?
Mazzaropi vinha com seu andar desengonçado. Vendo assim, no filme, parecia que ele era assim mesmo no cotidiano. Depois, começava a falar com um jeito arrastado, caipira, com sua ética interiorana, que não entendia as espertezas dos espertalhões da capital e respondia a eles com sua esperteza de Jeca, e depois de muita luta punha os espertalhões na parede. Mas onde estava a graça disso tudo, perguntavam-se os críticos.
O cinema de Mazzaropi era uma luta frequente, entre o caipira e o metropolitano. A vida turbulenta da cidade grande. Eventualmente ele já estava na cidade grande e era, por exemplo, chofer de praça (hoje dito taxista). Então se tornava pródigo em dar lições de moral, em ensinar a quem estivesse por perto o que era certo ou errado.
O ator em "As Aventuras de Pedro Malazartes" (1960), filme que também dirigiu José do Amaral/divulgaçãoMais.
Por uma vez foi um fanático corintiano, bem citadino, desses que não suporta palmeirense. Que fazer numa segunda-feira em que o seu time foi derrotado pelo rival? Sair pelo bairro, de banca em banca, comprando todos os jornais do dia.
É como se a derrota se tornasse menor, já que pelo jornal é que a derrota se tornava sólida, gritando em letras garrafais que o seu time havia perdido. Não se devia deixar os palmeirenses —ou quaisquer outros— saber do acontecido.
Nós da cidade custamos a entender que esses caipiras se deslocavam naqueles anos 1950 ou 1960 do campo para a cidade. Essa migração é que Mazzaropi captou. Certo, Genésio Arruda o precedera, disposto a comprar bondes ou queimar todo o seu dinheiro num cabaré —em "Acabaram-se os Otários", de 1931. Mazzaropi era um caipira um pouco diferente, em vez de se adaptar à vida urbana, fazia a vida urbana vir a ele.
Mas, atenção: a plateia não era composta por um monte de caipiras que vinham ao cinema para se vingar dos usos e costumes da metrópole. Era uma classe média endomingada que tinha ali um ponto alto de sua vida social, que introduzia seus filhos ao grande comediante.
Em pessoa, Mazzaropi tinha princípios muito claros. Produzia um filme por ano. O seu filme. Na vez que produziu para outros se deu mal. Ganhava dinheiro e sabia preservá-lo. Orgulhava-se de seu começo na Vera Cruz, com Abilio Pereira de Almeira em 1952, “Sai da Frente”, estourou. Depois que a Vera Cruz faliu, continuou o trabalho, com colegas da antiga companhia na direção ou no roteiro.
Estabeleceu uma relação ética com os fãs. Oferecia ao menos 1h30 de diversão todo ano. Ao contrário de Renato Aragão e seus Trapalhões,, que transferiam a popularidade na TV para o cinema, Mazzaropi entendia que aparecer na TV desgastaria sua imagem. Nunca apareceu, desde o seriado "Rancho Fundo", entre 1950 e 1954.
Em 1958, fundou a sua própria produtora, a Pam Filmes. Instalou numa fazenda, em Taubaté, o seu estúdio. O equipamento vinha da Vera Cruz: tinha grandes câmeras Mitchell, montes de refletores e equipamento para som direto. Esse último equipamento era o mais importante —Mazzaropi não gostava de dublar seus personagens.
O declínio veio com o tempo. Primeiro, apegou-se a paródias de filmes estrangeiros —"Uma Pistola para Djeca", com Djeca no lugar de Django, ou de novelas da TV —"Betão Ronca Ferro", com referência a “Beto Rockfeller, grande sucesso na TV Tupi. Depois investiu em turismo, levando seu caipira a Bariloche ou Portugal. O público diminuiu. Mas mostrou sua fidelidade quando Mazzaropi v voltou ao interior.
Com sua origem circense, Mazzaropi dava a impressão de que era assim mesmo na vida pessoal. Em parte, era mesmo. Tudo nele dizia respeito a uma ética do velho interior.
Por exemplo, não era de pagar muito a atores e técnicos, mas não atrasava o pagamento nem um dia. Mas, quando tinha de aparecer dançando mostrava que sabia fazer mais coisas do que se poderia imaginar.
Assim foi até “O Jeca e a Égua Milagrosa”, seu último filme, de 1980. Morreu em junho de 1981, para tristeza de muitos fãs, para alívio dos críticos de cinema que tanto batiam cabeça, tentando entender o que fazia desse Jeca um sucesso tão grande e tão constante.
Agora, esta retrospectiva nos coloca mais perto do primeiro fenômeno da comédia cinematográfica brasileira. Depois viriam Os Trapalhões, depois Paulo Gustavo, numa história de arte popular que talvez ainda tenha algo a dizer.