Todos os moradores locais sabem que Veneza, na Itália, é uma floresta de cabeça para baixo. A cidade, que completou 1.604 anos no dia 25 de março, foi construída sobre as fundações de milhões de estacas curtas de madeira, socadas contra o solo com a ponta para baixo.
As árvores são lariços, carvalhos, amieiros, pinheiros, abetos e elmos, com altura que varia de 3.5 metros ou até menos de 1 metro. Elas sustentam os palácios de pedra e altos campanários há séculos, formando uma verdadeira maravilha da engenharia, que equilibra as forças da física e da natureza.
Na maioria das estruturas modernas, concreto reforçado e aço fazem o mesmo trabalho que essa floresta invertida mantém há séculos. Mas, apesar da sua força, poucas fundações atuais poderão durar tanto quanto as de Veneza.
"Estacas de concreto ou aço são projetadas hoje em dia com garantia para durar 50 anos", afirma o professor de geomecânica e engenharia de geossistemas Alexander Puzrin, do Instituto Federal de Tecnologia (ETH) de Zurique, na Suíça.
"É claro que elas podem durar mais tempo, mas, quando construímos casas e estruturas industriais, o padrão é de 50 anos de vida", explica o professor.
A técnica veneziana usando estacas é fascinante pela sua geometria, sua secular resistência e sua imensa escala.
Ninguém tem absoluta certeza de quantos milhões de estacas existem sob a cidade. O que se sabe é que há 14 mil postes de madeira firmemente instalados, apenas nas fundações da ponte Rialto, mais 10 mil carvalhos sob a Basílica de São Marcos, construída no ano 832.
As estacas eram imobilizadas o mais fundo possível, até que não pudessem mais ser comprimidas, começando na extremidade externa da estrutura e se movendo em direção ao centro das fundações.
Normalmente, eram nove estacas por metro quadrado em formato espiral. As pontas eram serradas para obter uma superfície regular, que ficaria abaixo do nível do mar.
Sistema impede Veneza de afundar há mais de 1.600 anos
A madeira, o solo e a água se combinam para oferecer notável resistência às fundações de Veneza Emmanuel Lafont/ BBCMais.
Por cima, foram colocadas estruturas de madeira transversais —zatteroni (placas) ou madieri (feixes).
No caso dos campanários, esses feixes ou placas tinham espessura de até 50 cm. Para outras construções, as dimensões eram de 20 cm ou até menos.
Carvalho era a madeira mais resistente, mas também a mais preciosa. O carvalho, posteriormente, só seria usado para construir navios, pois era valioso demais para ser enterrado na lama.
E, sobre a estrutura de madeira, os trabalhadores colocariam as pedras da construção.
O nome técnico é pressão hidrostática. Ela significa essencialmente que o solo "aperta" as estacas, se muitas delas forem inseridas densamente em um ponto, segundo ele.
Depois de mais de um milênio e meio na água, as fundações de Veneza se mostraram incrivelmente resistentes. Mas não são imunes à degradação.
Dez anos atrás, uma equipe das universidades italianas de Pádua e Veneza (incluindo o departamento florestal e de engenharia até o de patrimônio cultural) investigaram as condições das fundações da cidade, a começar do campanário da Basílica dei Frari, construído em 1440 sobre estacas de amieiro.
A equipe descobriu que, em todas as estruturas investigadas, a má notícia era que a madeira estava danificada, mas o sistema formado pela água, madeira e lama mantinha tudo aquilo unido, o que é bom.
Além disso, a água preenche as células esvaziadas pelas bactérias, o que permite que as estacas de madeira mantenham seu formato. Por isso, mesmo que as estacas de madeira sejam danificadas, o sistema completo de madeira, água e lama é mantido coeso sob intensa pressão, mantendo sua resistência por séculos.
Veneza não é a única cidade com fundações de madeira, mas é "a única em que a técnica de fricção foi empregada em massa, continua sobrevivendo hoje em dia e é imensamente bonita", ressalta Puzrin.